A Crise dos Student Loans nos Estados Unidos

Análises

A Crise dos Student Loans nos Estados Unidos: Origem, Reformas e Impactos Econômicos

O sistema de financiamento estudantil dos Estados Unidos é, ao mesmo tempo, um instrumento essencial para o acesso à educação superior e uma das maiores fontes de endividamento da população americana. Com uma dívida total que ultrapassa USD 1,7 trilhão, os student loans são detidos por cerca de 43 milhões de pessoas. Esse cenário tem recebido atenção crescente nos últimos anos, tanto pela proposta de perdão do governo Biden, pelos impactos dessa dívida no consumo das famílias e nas finanças públicas do país e pelos discursos recentes do presidente Donald Trump de pagamentos involuntários para dívidas em default.

Os empréstimos estudantis se dividem em dois grandes grupos: federais e privados. Aproximadamente 92% da dívida total está relacionada a empréstimos federais emitidos diretamente pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos. Desde 2010, todos os novos empréstimos federais são originados exclusivamente pelo governo, após o fim do programa FFEL (Federal Family Education Loan), que intermediava recursos por meio de bancos privados com garantias públicas. A operação é inteira federal, o Tesouro Nacional provê os fundos, o Departamento de Educação concede os empréstimos diretamente aos estudantes e, em contrapartida, esses valores passam a integrar os ativos financeiros do governo federal, ou seja, aparecem no balanço como créditos a receber. Essa estrutura tem implicações fiscais relevantes. Quando um estudante começa a pagar sua dívida, o governo registra as parcelas como receita não tributária. Por outro lado, atrasos, inadimplência ou perdões, afetam diretamente as contas públicas, já que representam uma perda de ativos federais. Segundo o Congressional Budget Office (CBO), o programa de empréstimos estudantis tem impacto fiscal semelhante ao de uma política de investimento de longo prazo: exige aporte inicial do Tesouro e retorno parcelado ao longo de décadas, sujeito a riscos de inadimplência, postergação e perdão.

Com juros fixos por lei e múltiplas opções de pagamento, os empréstimos federais oferecem condições mais favoráveis que os privados. Há planos tradicionais com amortização fixa em até 10 anos, e planos baseados na renda (Income-Driven Repayment Plans), que ajustam as parcelas de acordo com a capacidade financeira do mutuário. Em teoria, o sistema garante acesso amplo à educação superior, especialmente para estudantes de baixa renda. Na prática, contudo, os valores acumulados podem se tornar impagáveis para muitos, principalmente aqueles que não concluem o curso ou não conseguem aumentar sua renda após a graduação.

Como agravante, as dívidas estudantis são notoriamente rígidas: na maioria dos casos não podem ser eliminadas por falência pessoal, salvo em raríssimas exceções por dificuldades extremas. Apesar de serem vistos historicamente como investimentos para o futuro, os student loans tornaram-se, no final de 2024, a terceira maior categoria de endividamento das famílias americanas, atrás apenas das hipotecas imobiliárias e financiamentos de carros. Com um saldo superior a USD 1,7 trilhão, a dívida estudantil já ultrapassou, em montante, o total das dívidas de cartões de crédito e outras linhas de crédito pessoal. A composição dessa dívida reflete não apenas seu volume crescente, mas também uma situação preocupante em relação à capacidade de pagamento dos mutuários. Em 2025, dados do Departamento de Educação mostram que, da dívida total, 15% ainda estão na universidade, 48% dos mutuários estão com os pagamentos em dia, 9% estão em deferment (postergação do pagamento sem acruar juros) e 25% já se encontram em forbearance (pagamentos atrasados com juros acruando). Essa dispersão mostra que, mesmo após a retomada das cobranças, a saúde financeira dos devedores continua fragilizada e a inadimplência segue como um risco concreto.

Em agosto de 2020, durante a pandemia da COVID-19, o Congresso implementou uma suspensão temporária dos pagamentos e dos juros de empréstimos estudantis federais via CARES Act, medida posteriormente prorrogada até outubro de 2023 pelo atual presidente Donald Trump. Essa suspensão incluía também a pausa na cobrança de dívidas em default e, após dúvidas iniciais, foi confirmado que o período contaria para programas como o Perdão de Empréstimos por Serviço Público (PSLF). No entanto, apesar de oferecer alívio imediato, a medida foi considerada insuficiente para lidar com os efeitos econômicos duradouros da crise sanitária sobre os mutuários.

Diante da realidade dos estudantes durante a pandemia, o ex-presidente Joe Biden invocou, em 2022, o HEROES Act para perdoar dívida estudantil, que visava abordar o montante de mais de USD 1.6 trilhão em dívida federal de empréstimos estudantis. Este plano se baseava na invocação do Higher Education Relief Opportunities for Students Act de 2003 (HEROES Act). A proposta central deste plano era cancelar, em uma única ocasião, até USD 20.000 em dívida de empréstimo estudantil federal elegível. A elegibilidade para este perdão estava condicionada à renda bruta ajustada do mutuário estar abaixo de limites específicos. No entanto, o Departamento de Educação não conseguiu efetuar o cancelamento de qualquer dívida sob esta política devido a litígios que questionaram a autoridade do Secretário de Educação para implementar o plano. Em última instância, a Suprema Corte dos EUA derrubou a política no caso Nebraska v. Biden, levando a Administração Biden a buscar uma alternativa para oferecer alívio da dívida.

Como alternativa, o governo lançou o plano SAVE (Saving on a Valuable Education), uma reformulação profunda nos planos de amortização baseados na renda. O SAVE é um plano de pagamento baseado na renda que calcula os pagamentos mensais com base na renda e tamanho da família do mutuário, não no saldo do empréstimo, e perdoa os saldos restantes após um certo número de anos. Para empréstimos de graduação, as parcelas são reduzidas de 10% para 5% da renda discricionária. Muitos mutuários terão pagamentos de USD 0 por mês, especialmente aqueles com renda mais baixa, e outros poderão economizar cerca de USD 1.000 por ano. Crucialmente, o plano SAVE impede que o saldo do empréstimo cresça devido a juros não pagos, desde que os pagamentos exigidos sejam feitos. Além disso, ele oferece perdão antecipado para mutuários com saldos principais originais de USD 12.000 ou menos, que receberão o perdão após 120 pagamentos (o equivalente a 10 anos).

A partir de 5 de maio de 2025, o governo federal irá reiniciar as cobranças involuntárias dos empréstimos em default, ou seja, dívidas inadimplentes, que inclui a reativação do Treasury Offset Program, que permite a retenção de restituições do imposto de renda, salários federais e outros pagamentos para quitar dívidas educacionais vencidas. De acordo com o press-release do governo Trump, 5 milhões de estudantes estão em default (sem pagamentos em mais de 270 dias) e 4 milhões estão em late-stage deliquency (sem pagamentos entre 90 e 269 dias) que entrarão em default em alguns meses, elevando o número de default para quase 25% do portfólio da dívida estudantil. Esse retorno das cobranças forçadas visa, segundo a administração, garantir que os contribuintes não arquem com uma dívida que foi assumida voluntariamente pelos estudantes. Apenas 48% dos mutuários estão em dia com suas obrigações, o que evidencia a dificuldade financeira enfrentada por uma parte significativa da população com empréstimos em default. A expectativa é que a retomada dessas cobranças aumente a pressão sobre o consumo e eleve a inadimplência no curto prazo.

Do ponto de vista macroeconômico, a retomada dos pagamentos tem implicações relevantes para o crescimento do PIB. Como o consumo das famílias representa cerca de 68% da economia americana, qualquer compressão da renda disponível afeta diretamente o ritmo de crescimento. Projeções da Oxford Economics e da RSM indicam que a volta das cobranças pode reduzir o PIB em cerca de 0,3 ponto percentual em 2025. Embora não suficiente para causar uma recessão, o impacto é significativo, especialmente em setores sensíveis ao consumo discricionário como turismo, bens duráveis e varejo. Além disso, a concentração da dívida em faixas etárias mais jovens e em pessoas com menor patrimônio líquido agrava seus efeitos distributivos. Devedores com altos saldos e baixa renda podem atrasar decisões como comprar uma casa, formar família ou abrir um negócio. Isso compromete a mobilidade social e pode reduzir, a longo prazo, a produtividade da economia. Por outro lado, o pagamento de dívidas em default arrefece, de certa maneira, a pressão causada pelo fiscal americano. Em um momento de busca por cortes de custos para ajustar a balança interna, o pagamento dos USD 200 bi de dívida em default ou atraso (em números pré-pandemia, antes do início da suspensão de pagamentos) pode aliviar o balanço federal. O governo enfrenta uma disjuntiva: ao insistir na cobrança integral, ele preserva os ativos públicos, mas pode gerar inadimplência em massa; ao oferecer perdões ou reduções generalizadas, abre um precedente fiscal custoso que afeta a dívida pública federal.

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